- Texto por Bia Pankararu
Em terras em que a terra é mais que areia, barro e poeira, ‘NÓS’ é o lembrete de que a terra é história, território, lar e futuro. Uma andança por seis territórios pernambucanos com as artistas plásticas Ianah Maia e Maré Matos, resulta numa obra cíclica e coletiva. Passaremos pelos territórios e pelos povos da Ilha de Deus, Açude Grande, Barro Branco, Xukuru de Cimbres, Pankararu e Ilha do Massagano, e em cada território existe um jeito único de enxergar sua terra-mundo e incrivelmente todos eles se conectam em algum lugar comum. Mexer com a terra nos traz de volta aos tempos de criança, às atividades de cerâmica, às histórias dos mais velhos e novas possibilidades para os que virão.
É da natureza humana registrar o ambiente e seu cotidiano, e a geotinta vem como ferramenta ancestral para o processo de registro do tempo e espaço. Nós fazemos parte desse tempo e espaço e, consequentemente, da paisagem ao redor. “De quais formas podemos ser paisagem?”. Essa provocação norteou as rodas de conversa antes de cada oficina realizada nos territórios por onde “NÓS” passou. Nesse momento de troca, um universo em cada narrativa, em cada lembrança, em cada ideia e interpretação do ambiente ao redor. O que é de mais característico e relevante, o que é indispensável para retratar o entorno, a cultura, o cotidiano e o que faz cada um de nós de fora para dentro e o avesso.
O projeto “NÓS” vem como um despertar artístico coletivo, tanto para as artistas Ianah Maia e Maré Matos, quanto para as comunidades envolvidas na proposta. Esse despertar se concretiza quando cada participante entende que cada um de nós faz parte da paisagem, como autores e obras-primas de suas vidas. A resistência cultural popular, que desafia o tempo e a globalização plástica, encontra sempre estratégias de perpetuar suas identidades e características, mesmo que com novas propostas e técnicas, o que de é de mais essencial em termos de identidade coletiva, saibam, esteve presente em cada traço, em cada cor, em cada simbologia representada nos murais produzidos por nós.
Dentre todos as comunidades percorridas, um detalhe em comum as unem e fazem o entendimento geral de que a terra em que se vive se torna um território quando se tem identificação. Em todas as respostas da provocação proposta nas oficinas, a paisagem de si estava presente nos elementos do ambiente. O encontro das águas está marcante, assim como as aves que se tornam serras, e serras que se tornam redes, redes essas que tecem gerações e gerações de identificações compartilhadas a partir do ambiente em que se vive. Vejo na árvore, presente em todos os murais, a representação perfeita do significado maior que a mostra propõe: encontrar as raízes do nosso chão e de nós mesmos.
Assim como uma árvore, buscamos nas raízes aquilo que nos nutre e fortalece para aguentar o processo de crescimento. A sociedade atual não consegue perceber como esse fortalecimento de base coletiva é fundamental para um ciclo saudável e regenerador para as gerações. Vivemos em tempos de ataques reais à democracia e ao direito de organização social seguindo suas culturas e tradições, ao mesmo tempo que o sistema capitalista e individualista nos enfia garganta abaixo, sempre é possível, que o sucesso justifica séculos de apagamento histórico e participação real dos detentores de saberes populares nas ditas concepções artísticas. Questionar a individualidade no campo das artes também se faz necessária quando poucos conseguem status e reconhecimento, enquanto nossas referências e inspirações seguem marginalizadas, usurpadas e descrentes de si. Esse reconhecimento de importância chega em passos lentos onde pulsa nossa conexão entre passado, presente e futuro. Propostas que fortalecem essa conexão, só pode ser feita em coletivo, assim como tudo realizado até aqui.
Entre quilombos, rurais e urbanos, aldeias indígenas, comunidades tradicionais e de resistência, do sertão ao litoral, uma outra provocação percorreu o processo criativo do projeto: “o que você gosta de fazer, mas só dá pra fazer em coletivo”. Desse momento em diante, uma infinidade de manifestações culturais, características de cada território, afloraram nos relatos e nos murais produzidos. A pesca, a dança, o plantar e o colher, as atividades de subsistência estão ali como forma de afirmar que o meio em que se vive faz parte integral do bem viver individual e coletivo.
“Nós” é uma grande obra com uma grande história. Em cada traço, em cada mural, em casa transição da animação, cada detalhe é carregado de significado e importância. São mãos e corações de várias gerações, um encontro entre a identidade dos povos e a arte de registrar nosso tempo e espaço, como no grafite e nas artes plásticas. Deixo, por fim, a ideia de que fundamentar as artes na individualidade é desperdiçar a força cíclica da cultura humana que está na coletividade. Vamos aproveitar e celebrar o melhor de nós.